“Ultimamente, é consumido pela sensação de que na verdade ele é duas pessoas diferentes, e em breve terá que decidir qual pessoa será em tempo integral e deixar para trás a outra pessoa. […] O que Lorraine acharia? Ela gostaria que ele fosse feliz, e que não ligasse para o que os outros diriam. Mas o velho Connell, o que todos os seus amigos conhecem: essa pessoa estaria morta de certa forma, ou pior, enterrada viva, gritando debaixo da terra.”
— Sally Rooney, Pessoas normais
Na cafeteria, escrevendo. Lugar bonito, café horrível. As plantinhas, as pinturas, os tijolos expostos. Mas o gosto de lavagem, credo. Um dia eu ainda acho o café certo. Aquela personagem no meu romance, todo dia tomando cafés ruins e tentando descobrir qual era o café que a filha gostava. A filha que faleceu. Nunca sei se é o certo, mas… tem uns dias em que eu fico mais feliz do que em outros. Deve ser o dia em que eu acerto, né?
O e-mail que esperei tanto, mas que não diz o que eu queria. Voltando ao LinkedIn e à Gupy. Você e outras 1280 pessoas estão concorrendo a essa vaga. Uma IA safada fazendo a triagem. Jogando meu currículo no ChatGPT e pedindo pra ele encher de palavras-chave. Máquina só sabe falar com máquina. Storyteller visual, tá bom, eu posso ser isso. Se vai me ajudar a falar com um ser humano, pra variar.
A semana passando, cada post para o Instagram uma agonia. Cansado, tão cansado. Fechando os olhos e imaginando um belo autógrafo na minha carteira de trabalho. O luxo de me reportar a uma única pessoa. Ou à máquina dessa pessoa. A sensação poderosa de um vale-alimentação no bolso. Ir ao mercado e não ficar triste.
Lendo o novo livro da Sally Rooney. Cópia antecipada, que puta privilégio. Frases curtas, fluxo de pensamentos. Parágrafos enormes. Páginas sem respiro, cheias de oxigênio. Uma ou outra alfinetada na alma, sentenças que destaquei com linhas tortas de marca texto. Vários pontos finais, a Sally Rooney. Tentando imitar a Sally Rooney na newsletter.
Com 14 anos, roubando palavras dos livros de Deltora. A cena que preciso escrever: um menino, o mar e uma ilha. Os barcos, quais são os termos. A proa, a popa. Palavras novas, como é bom aprender palavras novas. Aumentar o estoque de ferramentas. Histórias que nunca vão ver a luz do dia, mas me ensinaram, como me ensinaram. Palavras que finalmente dizem o que eu quero. Roubando como um artista muito antes de ler o livro.
Os cascos de cavalo no asfalto, aqui na frente de casa. A semana farroupilha, o dia do gaúcho. O sticker do telegram: vai um chima? Todos eles voltando do desfile. Se olhasse, e não olho, só veria rostos desconhecidos. Sentado nos fundos de casa escutando a música do baile, lá embaixo. Tão alta. Uma vida que ficou pra trás. Uma decisão consciente, foi o que a minha psicóloga disse. Acho que foi mesmo. A saudade, mas nenhuma vontade de voltar. O jeito como dois sentimentos opostos podem coexistir com a mesma intensidade.
Eu quero um churrasco, diz a Andressa. Porque é dia do gaúcho, ela tá certa. Vai um churras? Um dia eu vou ser melhor, vou acordar cedo e fazer um churrasco pra minha noiva. A carne espetada do jeito certo, o fogo na intensidade adequada. Meu pai me dando dicas a vida inteira. Eu sou meio surtada com essa coisa da comida, né? Sim amor, especialmente nos domingos e feriados. Mas eu sou surtado com tantas coisas, todos os outros dias, tá tudo bem. Ela vai lá e faz o churrasco dela.
Uma newsletter na sexta. Uma sexta-feira com cara de domingo. Blocos de texto sobre tudo e sobre nada.
uma pessoa que sabe fazer churrasco ganha muitos pontos. 😊
Me deu vontade de ler sally rooney esse seu texto. A autora nunca tinha me despertado nada. Obrigada! ☺️