“Pensamos na linguagem como algo manso que vive em canteiros bem cuidados, protegidos por regras e cercas. Então alguém mostra essa mesma linguagem crescendo bela e selvagem, como trepadeiras florescentes que consomem cidades, apagam a calçada e as faixas. Trespassando qualquer cerca que tentaria contê-la. Reconquistando. Remodelando. Reformulando.”
— Jeff Zentner, Na luz selvagem
Noite passada, sonhei que tive uma grande ideia.
Nossa, ouvir sobre os sonhos dos outros é insuportável. Eu sei, eu sei, mas não desista de mim ainda.
Costumo ter boas ideias a partir de sonhos. Nesse sonho específico, porém, eu não tive uma grande ideia que posso usar na realidade — a ideia só era grande dentro do sonho mesmo. Aí o meu eu do sonho começou a ter mais e mais ideias que se somaram àquela primeira grande ideia, e o Denys do sonho estava exultante, percebendo que estava acontecendo com ele o mesmo que rolou numa noite em setembro de 2017, no mundo físico, quando tive todas as pequenas e grandes ideias que deram origem ao Sem raízes, o romance que tô reescrevendo hoje em dia.
Quando acordei, fiquei avaliando se a grande ideia do sonho poderia se tornar uma grande ideia aqui fora. Era sobre uma Santa Maria distópica em que um rio atravessava todas as principais avenidas da cidade. Um grupo de pessoas caçava monstros ao longo desse rio, criando um tipo de corrida muito disputada por adolescentes. Influência do livro que tô lendo agora, A corrida de escorpião? Muito possivelmente.
Minha conclusão sobre a grande ideia: ela não é grande, não ainda. Quem sabe no futuro.
Com o Sem raízes foi assim mesmo. Sonhei com um menino que se curvava sobre um buraco no solo, um túnel repleto de raízes luminosas, acesas num violeta belíssimo. Esse menino tinha um irmão, e a casa em que eles moravam não era bem a casa deles. Era tudo o que eu sabia.
Aí teve uma noite em que eu tava dirigindo até a antiga casa da Andressa. Uma música específica tava tocando na rádio. Eu tava me aproximando dos trilhos do trem que atravessam meu bairro. Por um acaso do destino (ou não), foi bem na hora em que cruzei os trilhos do trem que tive a ideia que fez o livro acontecer. Ela veio graças a um conjunto de coisas: a música, a lembrança do videoclipe, aquele sonho ainda martelando na minha cabeça, lutando pra se transformar em algo maior. E aí, pra dar um toque de poesia: os trilhos do trem. Fiz a travessia — tive a ideia.
Só que uma ideia raramente vem assim, no singular. Enquanto dirigia, fui pensando e pensando e pensando, entendendo quem eram aqueles dois irmãos, várias pequenas ideias somando-se à ideia maior. Mas e o buraco na terra? Aquelas raízes luminosas? Que tipo de criaturas ele encontra lá dentro? Espera aí, existem criaturas.
Quando cheguei na Andressa, fui rude daquele jeitinho especial que só os artistas sabem ser pra proteger suas ideias e disse: Oi. Me dá um papel e uma caneta, urgente.
Nos últimos meses, tive de fazer uma pausa no Sem raízes pra trabalhar em outros projetos com prazos mais curtos. Tô morrendo de saudade desse romance e doido pra voltar a conviver com os personagens dele, mas não posso reclamar: esse tempo tem sido muito bem aproveitado em outras histórias que vão chegar aos leitores mais cedo.
O que me leva à notícia: meu primeiro contrato de publicação de um livro físico veio em dobro. No início do 2º semestre, Eu sei que vou te ver amanhã e Bisão-nascente ganham novas edições pela editora Crisálida. E Bisão-nascente, veja só, chega com um conto inédito que expande o universo do Oli e do Sev. Spoiler: a capa tem cavalos!
Se você conta histórias, vou adorar ouvir sobre a relação entre seus sonhos e seu trabalho. Me conta respondendo esse e-mail, ou nos comentários do Substack?
Até breve.
Denys
Acho que nunca tive um sonho que trouxesse alguma ideia razoável. Normalmente sonho coisas muito malucas, no mesmo estilo do "rio atravessando a cidade que gera uma corrida", e geralmente é uma mistura tão grande que nada de bom sairia dali. As minhas ideias só vêm enquanto eu tô acordado, geralmente quando tô olhando pro nada! E aí, sim, eu preciso correr pra anotar a ideia o mais rápido possível!
Curioso pensar que os trilhos do trem tiveram uma importância tão grande na concepção do "Sem raízes" e mesmo assim não tem trem nenhum no livro hahaha. Já empolgado pra ler essa nova versão! E feliz por ter um texto novo teu aqui ;)