Estou escrevendo isto numa quarta-feira. É o primeiro dia da semana em que me sinto vivo. Ou pelo menos sei que existo e posso fazer coisas.
Estou me saindo bem, na verdade. Começar a semana na quarta-feira é melhor do que começar na quinta ou na sexta, ou nem começar.
O dia tá ensolarado. Abri toda a casa e tem uma brisa fresca atravessando os cômodos. O pior do verão já se foi. Respiro devagar, pensando em como é difícil lembrar que a superfície existe quando você tá lá embaixo, submerso no oceano gelado da segunda e da terça-feira.
É curiosa essa coisa dos dias da semana. Nos piores dias da minha depressão, lá em 2015, eu não conseguia discernir os dias com clareza. Eles eram todos iguais, se misturavam. Aconteciam à minha frente sem começo, meio ou fim e não me causavam impressão alguma. Alguns doíam mais, só isso.
Quando comecei a melhorar, escrevi sobre isso em um livro. Meu protagonista, que era basicamente eu mesmo, estava decobrindo que tinha depressão. Para além dos remédios e das tentativas de terapia, era assim que eu tinha decidido me curar: escrevendo.
É estranho. Meus dias estão estranhos. Não há diferença entre fins de semana e dias úteis. Estou vivendo uma linha ininterrupta que segue em frente, mas não chega a lugar algum.
Um tempo depois, quando li A redoma de vidro pela primeira vez, encontrei minhas próprias palavras nas palavras de Sylvia Plath.
Eu via os dias do ano se estendendo diante de mim como uma série de caixas brancas e brilhantes, separadas uma da outra pela sombra escura do sono. Só que agora a longa perspectiva das sombras, que distinguia uma caixa da outra, tinha subitamente desaparecido, e eu via os dias cintilando à minha frente como uma avenida clara, larga e desolada até o infinito.
— Sylvia Plath, A redoma de vidro
Foi algo que ressou em mim: essa percepção de que outra pessoa, talvez inúmeras outras pessoas, dividiam comigo a mesma forma de visualizar a depressão.
A linha ininterrupta. A avenida infinita. O calendário sem divisões.
Acho que parte do esforço de sair de uma crise é encontrar novamente essa divisão dos dias. Recolocar os acontecimentos em caixinhas, acompanhar a ponta da linha. Traçar os limites para saber quando você atravessa cada um deles.
Eu comecei a perceber que ler sobre a depressão me ajudava a ter poder sobre ela. Estudar os pormenores dessa doença me fez entender que eu não sou a depressão e a depressão não sou eu. Conforme eu tomava conhecimento das experiências de outras pessoas, desenvolvi mecanismos pra ficar atento a mim mesmo e reconhecer uma crise se aproximando. Não que eu tenha sucesso nisso todas as vezes, longe disso… mas encontrar esses mecanismos foi importante.
A depressão também é… menor que você.
Sempre, ela é menor que você, mesmo quando parece enorme. Funciona dentro de você, não é você que funciona dentro dela. Pode ser uma nuvem negra passando pelo céu, mas — já que a metáfora é esta —, você é o céu.
Você chegou antes. E a nuvem não pode existir sem o céu, mas o céu pode existir sem a nuvem.
— Matt Haig, Razões para continuar vivo
É terça-feira à noite agora. Uma nova semana. Estou vestindo minha camiseta favorita do Imagine Dragons e acabei de gravar 40 minutos de vídeos pro TikTok, onde posto conteúdo sobre Percy Jackson.
Quem diria? Eu amo fazer isso. Amo como as coisas que produzo pra lá não têm nada a ver com a escrita. Não são um esforço pra me divulgar como escritor, e talvez por isso mesmo funcionem. Amo o fato de que consigo falar na frente da câmera e perdi a vergonha de parecer idiota. Até consigo fazer as pessoas rirem às vezes.
Eu, Denys Schmitt, consigo fazer as pessoas rirem.
Comecei essa newsletter falando sobre não estar escrevendo, e, embora não tenha efetivamente voltado a criar, mexi meus pauzinhos para publicar um conto que já tinha escrito. Tenho amigos maravilhosos no mercado editorial e eles aceitaram trocar a preparação e a diagamação do texto por serviços de design gráfico. Outro amigo se ofereceu para fazer o lettering. Vários outros me incentivaram com seu entusiasmo e elogios à capa, que acabou de ficar pronta.
Eu tinha esquecido como é boa a sensação de colocar uma história no mundo. Mas tinha esquecido também de outra coisa mais importante: essa sensação não deve ser meu objetivo como escritor. A escrita só é boa se me fizer feliz enquanto eu estiver escrevendo, não só depois que eu publicar. O presente que você recebe não é o feedback sobre o seu trabalho, o presente é o próprio trabalho. Foi a Emily Dickinson1 que disse isso, não eu.
Veja só, eu não imaginava que terminaria esse texto de uma forma positiva quando escrevi as primeiras linhas, mas aqui estamos. Pequenos milagres de uma terça-feira com começo, meio e fim.
Se não foi a própria Emily Dickinson, tenho certeza de que foi a Emily Dickinson da série, aquela com a Hailee Steinfeld.
Vou me permitir entrar em uma reflexão mais profunda sobre quando eu te conheci. Tu era bixo da minha namorada na Universidade, isso significa que deve ter sido em 2012. Em uma das viagens de ônibus que fizemos para a Feira do Livro de Porto Alegre, lembro de tu estar extremamente empolgado com o lançamento do primeiro filme de "Jogos Vorazes". Acho que tu tava sentado no banco em frente ao meu, não muito mais distante do que isso, e falava empolgado com as outras pessoas sobre tua paixão por essa série literária da qual eu já tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido ou me inteirado. Pouco tempo depois, fui ao cinema e assisti o filme (ou será que eu já tinha visto, na época da Feira? Não importa), e sei que adorei, mas eu não conseguia externar essa adoração do mesmo jeito que tu - eu tinha, e ainda tenho, muita dificuldade em admitir que gosto das coisas que gosto; usar uma camiseta temática pela primeira vez foi um sufoco, e só aconteceu vários anos depois. Volta e meia eu lembrava do jeito que tu falava sobre a série no ônibus, até te invejei pela empolgação que tu sentia e eu não conseguia reproduzir. Acho que a maneira como tu expõe essas tuas paixões, principalmente esse exemplo dos vídeos do Percy Jackson, é muito bonita e inspiradora. Te admiro por isso.